Extra 02

 

A quem interessa a inelegibilidade do

analfabeto?




[2010]

A devastadora vitória do artista Tiririca para a Câmara dos Deputados, seguida por um impasse no Judiciário sobre eventual indevido preenchimento de uma condição de elegibilidade invoca um oportuno debate sobre em torno da eficácia da norma que determina a inelegibilidade do analfabeto, prevista no §4º, art. 14, da Constituição Federal.

 

José Afonso da Silva ensina que as inelegibilidades teriam por objeto a proteção da probidade administrativa e da moralidade para exercício de mandato considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade das eleições contra a influência do poder econômico ou do abuso do exercício de função, cargo ou emprego na Administração. Adverte que se tornariam ilegítimas quando estabelecidas com fundamento político, para assegurar o domínio do poder por um grupo que o venha detendo, sendo que  seu sentido ético deve se correlacionar com a democracia(fl. 228, “Comentário Contextual”). O indivíduo iletrado não se enquadra em nenhuma hipótese de inelegibilidade legítima delineada pelo ilustre constitucionalista. O simples fato de uma pessoa ser analfabeta já é por si só uma imoralidade, conseqüência do descaso e da negligência do Estado em cumprir deveres impostos pela Constituição. Entre as ilegítimas, é possível vislumbrar fundamentos de ordem política para o caso do analfabetismo.

 

Há um antigo sentimento arraigado no imaginário da sociedade brasileira que se convencionou a chamar de cultura do bacharelado, que se mantêm muito presente no debate político. Preconiza que apenas os bacharéis ou os eruditos teriam a capacidade de estar no poder e decidir o que é o melhor – o bem – para todos os demais. Essa soberba da erudição, já exaustivamente retratada e satirizada na literatura de épocas e procedências tão distintas, de Cervantes a Moliere, de Aluízio Azevedo a Lima Barreto, em apenas raríssimas vezes se revelou altruística em relação aos mais necessitados, geralmente analfabetos. 

 

A política é uma esfera da vida social que exige primordialmente o diálogo, o que não se leciona em salas de aula e não se aprende na biblioteca. Demanda o contato com a realidade, a capacidade de ouvir o próximo, muito mais do que o mero conhecimento técnico estéril e do que uma visão romântico-filosófica do mundo. Exige a pluralidade – a busca do entendimento entre diferentes interesses dos representantes de todas as esferas da sociedade. E foi nessa sintonia que Pablo Neruda encerrou uma poesia que ousou chamar “Asi es mi vida” com os versos: “soy el hombre del pan y del pescado; yá no me encontrarán entre los libros; sino con las mujeres y los hombres; ellos me han enseñado el infinito”.

 

Max Weber, que mergulhou com maestria na questão, ensina que a “vocação política”, distinta da “vocação científica”, é composta por uma série de ingredientes como a paixão, o senso de proporções, ousadia, perseverança, convicções firmes, (fl 124, “Política como Vocação”); sem em nenhum momento indicar a erudição entre as qualidades indispensáveis ao homem político. 

 

E afinal, é notório que existem técnicos multidisciplinares e analistas jurídicos no Congresso à disposição do legislador para instrumentalizar tecnicamente suas decisões.

 

Numa análise sistemática da Constituição, a inelegibilidade do analfabeto entraria em rota de colisão com uma série de normas e não se sustentaria. O Estado Democrático de Direito e o pluralismo político – forma e fundamento da República (art. 1º) já se abalam pelo simples absurdo de ainda existirem analfabetos no Brasil mais de vinte anos após a edição de uma Constituição que se pretende “cidadã”. Uma parcela da sociedade é vítima da omissão do Estado que torna letra morta direitos e garantias fundamentais como a igualdade ( art. 5º), o direito social à educação (art. 6º) e a garantia de educação básica e obrigatória gratuita, assegurada inclusive sua oferta para todos os que não tiveram acesso na idade própria  (art. 208). Essa realidade faz sangrarem objetivos fundamentais da república, como a erradicação da pobreza e marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos, sem preconceitos e qualquer outra forma de discriminação (art 3º ), bem como princípios da República nas relações internacionais, como a autodeterminação dos povos e a prevalência dos direitos humanos (art. 4º). Porque o iletrado é excluído de muitas oportunidades de trabalho, geralmente aquelas com melhor remuneração, além de ter acesso restrito a preciosidades da cultura e da ciência. Todos os entes federativos foram omissos: os municípios porque não cumpriram seus deveres de concretizar programas adequados de educação infantil e de ensino fundamental e os Estados e a União porque não prestaram àqueles a cooperação técnica e financeira devida, conforme dispõe o art. 30, VI.

 

Não bastasse todo o prejuízo acarretado pela referida omissão, a aplicação prática do §4º, art. 14 que torna inelegíveis os analfabetos, significa punir duplamente os analfabetos ao inviabilizar sua plena participação do Estado Democrático, sendo privados da possibilidade de votar em seus iguais, bem como da possibilidade de se candidatar e participar diretamente das discussões e decisões políticas fundamentais para sua existência. Negligencia-se a soberania popular (art. 14, CRFB). 

 

E, a se concretizar a intervenção judicial excluindo o candidato Tiririca posteriormente à vultosa votação, o que estaria sob grave atentado seria também o artigo 2º da Constituição, a cláusula de separação dos poderes, na medida em que o poder deveria emanar do povo (art. 1º) através representantes eleitos com a igualdade de valor de todos os votos (art. 14), enquanto um Tribunal do Poder Judiciário – com membros concursados – determinaria que centenas de milhares de votos em um representante de outro Poder não teriam mais nenhum valor.  

 

A única solução prática adequada ao caso sem excluir do sistema o §4º, do art. 14, e capaz de harmonizar a colisão de tantas normas, princípios e valores, seria a de entender que tal dispositivo teria sua aplicabilidade mediata, dependendo do efetivo esforço do Estado no sentido de cumprir seu dever de proporcionar a alfabetização de todos os brasileiros. Porque a alfabetização é um dos mais básicos requisitos para a cidadania, a inclusão social e uma vida com dignidade e um Estado que pretende ser democrático deve envidar todos os esforços para garantir a universalidade desse direito como prioridade absoluta.

 

Contudo, o mandato atual de Tiririca, independentemente do veredito acerca de sua condição de alfabetização, seja pela vontade do povo nas urnas, seja pela vontade do Constituinte de 1988, e, sobretudo, por uma questão de Justiça substancial, é indiscutivelmente legítimo e juridicamente válido.

 

 


Otávio Dias de Souza Ferreira – Carta Maior – 03.11.2010.

Portal em processo de atualização. Artigo não consta mais na página, ao menos provisoriamente.